Paradoxos

Li nos jornais que um foragido da Justiça resolveu voltar ao cárcere. Pensei: deve ser por arrependimento. Não era. Motivo: não suportou o frio de 4 graus de Florianópolis e suplicou à Polícia seu retorno ao sistema penitenciário. Atendido prontamente, vai cumprir o restante da pena numa cela da Penitenciária de São Pedro de Alcântara. Na televisão, vi um assassino arrependido confessar seu crime até então de autoria desconhecida, implorando ser preso. Sinais de que a vida aqui fora, para alguns, é pior do que a cadeia.
Meditando sobre esses paradoxos, lembrei-me do meu pai, que dizia: “esse mundo está de cabeça para baixo.” Está mesmo. Os primeiros dez dias do mês de abril trouxeram para uma nação estupefata duas manifestações paradoxais de amor, ainda que antagônicas. Contrariando o senso comum, por isso também paradoxal, um dos amores clamou erroneamente pela vida explicitando um amor inócuo; no outro caso, mais grave, uma baixa autoestima precipita-se para a morte e deixa entrever, num último e derradeiro pedido, a volta ao ventre da mãe. O que terá movido essa última faísca de amor revelada post-mortem? Certamente não seria amor, porque esse divino sentimento, em sua essência, jamais conduz a ações odiosas.
Na primeira história, colocando os verbos no presente, um pai, desesperado pela prisão de seu filho, embriaga-se e resolve fazer-lhe companhia na prisão. Recordei-me da história do filho pródigo. O episódio mundano, entretanto, nada tem do bíblico. O ideal do pai brasileiro, no seu modo de entender, é agir de modo a infringir a lei até ser preso e parar na mesma cela em que seu filho se encontra. Assim, pensa ele, o sofrimento compartilhado representará diminuição da dor. Tanto fez que conseguiu e aguarda, numa cela junto ao desmiolado filho, o desfecho da persecução penal. Até então, um inquérito policial estava a caminho em direção à família; com as ações impensadas do tresloucado pai, agora são dois. Como disse uma vez meu ex-vizinho e sempre amigo Jesuíno, “desgraça pouca é bobagem”.
Natural o sentimento de frustração e impotência de um pai diante da desgraça de um filho. Normal que mova “céus e terra” no sentido de ajudá-lo. Melhor, entretanto, seria empenhar seus bens e, na ausência deles, sua força de trabalho de modo a contratar uma boa defesa. E, na impossibilidade total de auxiliá-lo financeiramente, poderia confiar na Defensoria Pública, que existe justamente para as hipóteses nas quais o preso não disponha de condições de arcar com os custos de um processo. E o pai, enquanto isso? Estaria garantindo conforto moral e força espiritual para que seu filho, seguro de seu amor e compreensão, acreditasse na possibilidade de ser posto em liberdade e encontrasse na volta, afastado da criminalidade, um lar em paz para recomeçar a vida. Por isso, essa forma de amar foi totalmente inócua e estúpida, colocando em dúvida até mesmo a validade do nome amor.
O segundo caso foi trazido a público no dia 8 de abril, no jornal O Estado de S. Paulo. Junto às notícias detalhadas sobre a tragédia no Rio de Janeiro, transcreveu-se a carta do suicida Wellington, que, a certa altura, afirma: “quero ser sepultado ao lado da sepultura onde minha mãe dorme”. Despreza a palavra “enterrado”; não usa os termos “túmulo” e “morta”. Sua mãe dorme e ele deverá, segundo seu último desejo, dormir ao lado dela.
Wellington é fruto de uma época em que “as crianças já não nascem em couves nem são trazidas pela cegonha, porém os velhos desaparecem entre as flores”. Falar de morte, hoje, é tão de mau gosto e obsceno quanto era mencionar parto e parturiente perto de crianças, verdade escamoteada em ambos os casos. No que se refere à morte, só se encaixa o comportamento se pensarmos numa sociedade individualista e hedonista para a qual morrer é sinônimo de destruição. Sendo incômoda a ideia, não se fala dela de modo adequado.
A violência presente nos jogos e nos filmes acostuma a situações em que a morte é também um jogo e, como tal, incruenta. Todo o contexto adverso repercute nos indivíduos de maneiras variadas; e, ao se baterem de frente com mentes perturbadas, trazem consequências fatais. Sartre, no livro As palavras, diz: “A morte era a minha vertigem porque eu não amava viver: é o que explica o terror que ela me inspirava […]. Quanto mais absurda a vida, menos suportável é a morte”. Esse, provavelmente, era o sentimento de Wellington em relação à vida e à morte. Por que, no entanto, ele planejou entre os passos terríveis que ia cometer suicídio? Pode ser, talvez, para gozar a fama que desejou numa vida inteira feita de rejeições, dos outros e de si próprio. Quantos outros doentes não estarão buscando também a fama a qualquer custo? Ou será que a morte, para outros, é melhor do que a vida? Nesse caso, não estava certo Emil Cioran quando disse que os otimistas são os que se suicidam.

Damásio de Jesus, extraído do seu blog: http://blog.damasio.com.br/

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